Acabei de traduzir um romance sobre o luto
passei meses seguindo um texto para decifrar
seus sinais e criar outro em outra língua
tudo ao mesmo tempo.
Você me diria que traduzir um texto não exige
a concentração necessária para escrever do zero
ou
Você me diria que traduzir um texto é quase
tão aterrador quanto uma página em branco.
Foi muito difícil me concentrar porque estava
e estou muito concentrada numa única coisa:
o meu próprio luto. Mesmo assim terminei o trabalho.
Dizer o luto em outra língua reforça o anacronismo
da língua o que faz com que eu não esteja aqui
ou tenha armas novas. Pensar no meu luto
na minha língua faz com que a minha concentração
se desfaça em pedaços como o vaso tombado
cujos cacos não conseguimos juntar.
Falar do meu luto na minha língua
me obriga a ser contemporânea de mim mesma
o que neste momento é muito pouco provável.
Revisitar um tema familiar com armas novas
me oferece alguma estabilidade mesmo que seja
a estabilidade da própria anacronia porque a outra
língua não está aqui ela está sempre em outro lugar.
Faço a reserva compro o ticket do transporte para ir
até lá. Agora eu tenho uma reserva.
Acabei de escrever um prefácio que dava a entender
que eu sabia bem o que era o amor
mas além de ter escrito a palavra em itálico
o que já mostra o quanto ela representa
um certo estranhamento
a verdade é que eu colei de outro texto.
Não sei se você conhece mas há um livro italiano
que fala sobre as confissões do amor
ou de como o amor
pelo menos no nosso caso
se transformou numa obsessão sem remédio
num mal-entendido na busca pelo verdadeiro sentido
de cada frase nos quilômetros que nos mantêm
instrinsecamente conectados e separados
num relógio antigo que ninguém dá corda
no delay da sua voz
enquanto penso quem sou
sem a sua presença ou se é ela que me alegra
e deprime me eletriza e reinventa.